segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Erro de projeto limita o uso da energia do madeira

A hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, já tem 14 turbinas em operação. Jirau, usina cujas obras começaram um pouco mais tarde e sofreram com atrasos, deverá ligar sua primeira máquina no dia 21. Um dos dois circuitos que formam o sistema de transmissão, conectando Porto Velho (RO) a Araraquara (SP), tem previsão de iniciar sua operação comercial em outubro.

Esses projetos de porte gigantesco, que foram licitados entre 2007 e 2008, estão recebendo investimentos totais de R$ 36 bilhões e representam um esforço sem precedentes para transformar o potencial hidrelétrico da Amazonia em energia. Para tirá-los do papel, as concessionárias responsáveis precisaram driblar a oposição de ambientalistas e enfrentar uma revolta de trabalhadores, em Jirau. Só não imaginavam ser surpreendidas com um erro grave de planejamento: os sistemas de proteção e controle dos equipamentos – na geração e na transmissão – não conversam adequadamente entre si.
O erro provoca um risco de prejuízo incalculável: em situações de estresse do sistema, as turbinas de Santo Antônio e de Jirau podem entrar em um processo conhecido tecnicamente como “autoexcitação” das máquinas, caso não sejam respeitados limites para o escoamento da energia produzida. Em português claro: as máquinas das duas megausinas do rio Madeira correm simplesmente o risco de queimar.
Para evitar que isso ocorra, o primeiro dos dois circuitos da rede de transmissão deverá seguir rigidamente uma restrição. Mesmo tendo capacidade para escoar 3.150 megawatts (MW) de energia das duas usinas para o sistema interligado nacional, terá que limitar a transferência de eletricidade para o sistema interligado nacional a 700 MW. Outros 400 MW das hidrelétricas poderão ser escoados, por meio de um mecanismo alternativo, para o subsistema Acre-Rondônia. Ao todo, são 1.100 MW. Ou seja, até a solução do problema, a geração de energia em Santo Antônio e de Jirau deverá ficar comprometida.
Ninguém tem certeza do volume de energia que as hidrelétricas estarão produzindo em dezembro, quando está prevista uma solução para o problema, porque o cronograma de obras planejado pelas empresas acabou atrasando. Mas esse volume certamente estará acima do limite da rede de transmissão. Em nota enviada ao Valor, o Ministério de Minas e Energia prevê a operação de 26 turbinas em Santo Antônio, totalizando 1.905 MW de potência instalada. Jirau, pelas projeções do ministério, terá 15 máquinas operando e 1.125 MW de potência no fim do ano. Juntas, terão 3.030 MW, em dezembro.
Mesmo considerando que não será o período de pico das chuvas, com as turbinas sem trabalhar a pleno vapor, tudo indica que uma parte da capacidade de geração das usinas vai ficar sem uso porque a energia não poderá ser escoada para o restante do país.
Para entender a origem do problema, é preciso recorrer a um almanaque de vocábulos da engenharia, que dão nome a operações importantíssimas dentro do funcionamento de um complexo como o do Madeira.
O complexo de transmissão do Madeira foi licitado em novembro de 2008, depois das duas usinas. Ele é composto por duas estruturas semelhantes e paralelas, que percorrem um trajeto de 2.375 quilômetros, conhecidas como circuito (ou bipolo) 1 e circuito 2. Cada estrutura, além da linha de transmissão, tem uma estação conversora de energia em ambas as pontas – uma em Porto Velho e outra em Araraquara.
As linhas de transmissão podem usar duas tecnologias diferentes: corrente contínua e corrente alternada. No caso do complexo do Madeira, o leilão não especificava nenhum dos dois e coube ao vencedor escolher. Foi escolhida a corrente contínua, mais barata e apta para grandes distâncias, que não era usada em uma conexão importante no Brasil desde a hidrelétrica de Itaipu.
Na elaboração do projeto, em 2010, detectou-se que havia a necessidade de instalar um equipamento chamado “master control” nas estações conversoras. Só que o “controle mestre”, fornecido pela multinacional sueca ABB, não dialoga corretamente com os sistemas de proteção das duas usinas – fornecidos pela alemã Siemens. A coordenação do sistema de transmissão com as unidades geradoras envolve respostas de milésimos de segundo. Com os equipamentos atuais, há falta de coordenação entre as duas pontas, na velocidade necessária.
É isso o que provoca o risco de “autoexcitação” das turbinas. Esse problema será corrigido apenas em dezembro, na melhor das hipóteses, com a instalação de outro equipamento caro e moderno, que foi encomendado pelas concessionárias de Santo Antônio e Jirau à sueca ABB, no fim de 2012. Trata-se do GSC (sigla em inglês para controle das estações geradoras). Ele custa aproximadamente R$ 14 milhões e estão sendo compradas duas unidades – uma para cada usina.
Agora, há uma corrida contra o relógio, que preocupa as autoridades do setor. Em ofício encaminhado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) ao Ministério de Minas e Energia, datado de 1º de julho e ao qual o Valor teve acesso, faz-se um apelo para que a Receita Federal dê tratamento prioritário ao desembaraço aduaneiro do equipamento sueco. Ele deverá chegar, até novembro, no aeroporto internacional de Viracopos (SP). O ONS alerta que normalmente a liberação alfandegária é feita em seis dias, mas relata casos em que houve demora de até um mês para o desembaraço, manifestando o temor de mais atraso ainda na solução do problema.
O erro no planejamento foi verificado no fim de 2010, mas só em junho deste ano apareceu em um documento público: a ata do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), que se reúne mensalmente, em Brasília. Na reunião, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) registra “preocupação” com carta recebida do ONS na qual o problema é relatado. Até então, a falha vinha sendo tratada por meio de ofícios, sem divulgação pública, provocando constrangimento entre as empresas envolvidas e órgãos do governo em torno da dimensão do problema.
O erro é atribuído ao ministério, que nunca fez nenhuma exigência sobre os sistemas de proteção e controle, nos editais de licitação dos empreendimentos.
Questionado, o ministério enviou à reportagem uma explicação detalhada sobre a falha, sem apontar responsabilidades. A Aneel, que exerce as funções de fiscalização, recusou todos os pedidos de entrevista. Só o ONS aceitou se pronunciar.
“Identificou-se tardiamente a necessidade de instalação do GSC na geração”, reconheceu o diretor-geral do órgão, Hermes Chipp. Segundo ele, há um grupo dedicado a monitorar cronogramas e conciliar os processos necessários para resolver a questão. Ele aposta em uma solução até dezembro e lembra que, devido ao atraso também na entrada em funcionamento das usinas e da própria linha de transmissão, o prejuízo não será tão grande. “Um atraso acabou ajudando o outro.”
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