Era inevitável, em razão da intensa judicialização da
saúde que foi se alastrando por todos os tribunais do país, a efetiva
participação do Supremo Tribunal Federal para decidir a respeito de
fornecimento de medicamentos considerados de alto custo, que não sejam
oferecidos pelo SUS ou que não sejam registrados na Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). O clima de expectativa vem num crescendo e
várias manifestações populares foram deflagradas em apoio à causa, que ganhou
espaço de destaque na imprensa nacional.
Tanto é que o relator, ministro Marco Aurélio Mello,
alterou o voto apresentado anteriormente para acrescentar a possibilidade da
importação de medicamentos não fabricados ou comercializados no Brasil, sem
registro na ANVISA. O ministro Luís Roberto Barroso defendeu a liberação por
decisão judicial em situações excepcionais, desde que atendidos determinados
requisitos. O ministro Edson Fachin, por sua vez, sugeriu parâmetros mais
rígidos para o fornecimento de medicamentos, elencando também condições para o
deferimento. O ministro Teori Zavascki solicitou direito de vista e o
julgamento foi suspenso, sem previsão de nova sessão.
Trata-se, na realidade, de um tema delicado, que deve ser
analisado em diferentes matizes, com prudência e cautela. De um lado, a saúde
como direito insofismável do cidadão, figurando como dogma constitucional. De
outro, a responsabilidade da União, Estados, Distrito Federal e Municípios como
entes responsáveis pelo fornecimento de medicamento de custo elevado, sem
registro na agência de controle que, pelas reiteradas decisões judiciais, vêm
superando a reserva orçamentária para tanto.
Mas a dimensão constitucional vai muito além da obrigação
do Estado de patrocinar medicamentos considerados de alto custo e ingressa no
campo dos direitos humanos e se finca no princípio da dignidade humana
universal, compreendendo uma rede de proteção ilimitada, amparando direitos já
conquistados assim como outros derivados do próprio dinamismo social.
Para
tanto, buscando um encaminhamento abrangente e mais condizente com o espírito
humanitário, recomenda-se a fundamentação filosófica da Bioética. Referida
ciência, dentre os princípios que a propulsiona, apregoa o da isonomia, o da
igualdade, ou da justiça, que vem atrelado umbilicalmente ao da beneficência (primum non nocere).
Por este pensamento, se determinada pessoa fizer uso de
certo medicamento que produziu o resultado desejado, beneficiando-a, outra, em
situação idêntica, seja lá qual for sua condição econômica, merece ser
aquinhoada com o mesmo tratamento. A saúde, vista desse patamar, é um direito e
não um favor, deferindo-se aos iguais condições iguais, sem discriminação.
Cesare Beccaria já observava que as vantagens da sociedade devem ser repartidas
entre todos os seus membros.
A Constituição Federal não ungiu cidadãos de primeira e
segunda classes e nem criou uma base utópica protetiva, aparelhando as pessoas
com os mesmos potenciais. Toda pessoa humana contém, na sua imensa grandeza, o
sentido próprio do universo, assim como é depositária de todo o valor da
humanidade Se todos são iguais perante a lei, o regramento isonômico não
permite outra interpretação a não ser um posicionamento inequívoco em defesa da
vida. Não há que se falar em defesa da “pessoa” e sim em defesa da vida, que é
o bem mais caro, indisponível, devidamente entronizado num cenário de proteção
estatal.
Apesar de todo o avanço da biotecnologia,
disponibilizando medicamentos até para as doenças graves e raras, não só para
prolongar a vida, mas conferindo ao seu detentor a qualidade condizente com sua
dignidade, nem toda população tem acesso aos benefícios, criando uma abissal
distorção e um impacto social altamente negativo.
Não é o espírito de compaixão que deve ordenar a
intervenção estatal e sim a identidade que cada um conserva, que é a identidade
relacional com o Estado, em que o cidadão é um ser participante de uma
realização corporativa. Se a convivência é uma parceria com o propósito de
solidariedade, esse sentido deve encontrar a expressão máxima na obrigação
estatal de tutela da vida humana e não na figura abominável do Leviatã de Hobbes,
que afugenta, aterroriza e intimida o cidadão.
Assim,
a impressão que se tem, no caso discutido perante a Suprema Corte, se for
diagnosticada a doença, rara ou não, com a prescrição médica indicando a
utilização de medicamento que tenha ou não registro na ANVISA, que seja
produzido por outros países, devidamente homologado pelos principais órgãos
reguladores internacionais, dentre eles o Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos e a European
Medicines Agency (EMA), da
União Europeia, negar o benefício ao cidadão é caminhar pela contramão de
direção da dignidade humana.
O artigo 24, letra ‘c’, da Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos, assim determina: “Os Estados devem respeitar e
promover a solidariedade entre Estados, bem como entre indivíduos, famílias,
grupos e comunidades, com atenção especial para aqueles tornados vulneráveis
por doença ou incapacidade ou por outras condições individuais, sociais ou
ambientais e aqueles indivíduos com maior limitação de recursos”.
Fonte: eudesquintino.jusbrasil.com.br
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